sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Era Uma Vez: Um País Que Dominava Os Céus

 


Já lá vai o tempo em que a América dominava o mundo com a sua aviação comercial. E tinha grandes fabricantes como a Douglas, a Lockheed ou a Boeing. A nossa transportadora teve ao longo dos tempos aviões destes fabricantes até mudar para a europeia Airbus.


Douglas


Boeing


Lockheed

Aos poucos estes fabricantes foram desaparecendo em fusões (pelo menos a componente civil) até restar apenas um grande fabricante americano. A Boeing. Os EUA começavam a ter o seu domínio contestado pelo consórcio europeu Airbus. Ficando o mundo (e com a queda da URSS), com um duopólio Boeing/Airbus.

No ano em que comecei este blogue, dediquei um post à Boeing. Há 15 anos atrás. O tempo passa...

Nele, (Boeing 787: Um Pesadelo De Avião - Parte I), já chamava a atenção para o que eu achava que era o caminho errado que estavam a seguir. Coloco aqui algumas partes do que disse na altura:

Há dois anos atrás, escrevi um artigo bastante crítico sobre este avião e no início deste ano voltei a falar do projecto. Dado que saiu notícias sobre os resultados da Boeing e eu ainda não tenho nenhum artigo no blogue sobre este assunto, penso ser uma boa altura para escrever um pouco sobre o que acho deste novo Boeing.
Antes de mais, é importante realçar que no meu ponto de vista, este Boeing representa um pouco o estado em que os EUA se encontram, com muitos problemas e más opões tomadas, os anos vão passando e continuo a pensar exactamente o mesmo...

Há 15 anos atrás quis registar neste blogue, as más opções da Boeing. Destaco também este parágrafo:
2 - Pressa na entrega. Devido ao agressivo marketing feito e datas irrealistas, a Boeing está disposta a sacrificar tempo de testes, para cumprir prazos. A Boeing esquece-se da sua principal função que é construir aviões e não satisfazer accionistas que não querem ver as suas acções descerem. A credibilidade da Boeing poderá ficar sériamente em risco, com o que se tem feito com este avião.

Há 15 anos atrás, eu chamei a atenção que engenheiros da Boeing, estavam a alertar sobre o caminho perigoso que a companhia estava a tomar.

... 787 unsafe, claims former Boeing engineer
Este foi um artigo interessante que apareceu em 2007, onde é referido um engenheiro da Boeing que foi despedido.
"Boeing 787 Dreamliner 'could be unsafe'
BOEING'S new carbon-composite 787 Dreamliner plane may turn out to be unsafe and could lead to more deaths in crashes..."

Resultado? Despedimentos para quem é crítico. A pressão é exercida para quem sabe construir aviões, esteja de bico calado. Foi despedido em 2006, há 18 anos atrás.

E a quem este engenheiro sénior tinha falado sobre as suas preocupações? à FAA (Federal Aviation Administration) , que é o regulador. E que disse eu sobre o regulador?

A FAA (Federal Aviation Administration) ajusta as suas regras de modo a poder "passar" o 787. Se eu já sou muito negativo sobre este avião, isto deixou-me muito pessimista e perplexo por este cumplicidade por parte da FAA.

FAA to loosen fuel-tank safety rules, benefiting Boeing's 787

"The Federal Aviation Administration (FAA) has quietly decided to loosen stringent fuel-tank safety regulations written after the 1996 fuel-tank explosion that destroyed flight TWA 800 off the coast of New York state.


10 anos depois, escrevi sobre outro avião da Boeing. Algo ainda mais grave e já com consequências trágicas. O Boeing 737 Max. O avião que hoje dificilmente alguém poderá dizer que nunca ouviu falar dele.

Em 2019, coloquei um post "Houston: We Have... a Big Boeing Problem" e voltei a apontar as situações.

... a Boeing enfiou-se num buraco que pode não conseguir sair. O que fizeram com o 737 MAX é algo que não poderiam ter feito.
E se a Boeing não o poderia ter feito, a FAA (Federal Aviation Administration) muito menos poderia aprovar tal coisa. E aprovou.
Parece-me que há algo muito mais preocupante ainda do que a Boeinge a FAA.
Parece-me um sintoma do declínio dos EUA...

... estão a tentar manterem-se na corrida por qualquer meio. Mas no caso da indústria aeronautica civil não podemos aldrabar, porque os aviões caiem, juntamente com todas as pessoas que lá estão dentro...

... Como é que a FAA perdeu a capacidade de fazer o que é suposto, verificar que o avião é seguro, é algo que vai acender muitas luzinhas por esse mundo fora...

Com o que fizeram no 737, eu não sei se a Boeing vai conseguir sobreviver. A companhia está ferida de morte e no próximo desastre de um Boeing 737 MAX vai muito possivelmente haver uma brutal quebra de confiança nos aviões Boeing.

E o incidente com a porta que saltou e que só por acaso é que não matou uma série de gente naquele avião, parece-me a mim que é um dos últimos pregos do caixão. As companhias mais importantes  e com reputações a defender têm que se afastar o mais rapidamente e de forma discreta dos Boeings que possuem.

Destaco um artigo que saiu no mês passado:


A crise da Boeing: a empresa conseguirá sair viva?

... Boeing, em retrospecto, já que atualmente se encontra dominada por provavelmente sua pior crise até o momento, aparentemente incapaz de obter o controle das alavancas, pois um problema após o outro continua jogando-o no ar. um espetáculo de descrença tanto para a companhia aérea quanto para o mundo, enquanto observa um dos ícones americanos mais duradouros se debater e falhar com o sangue de 346 vidas em suas mãos.

O mais recente da série é o enfrentamento de possíveis acusações criminais de fraude que estão sendo contempladas pelo Departamento de Justiça dos EUA, segundo a Reuters, em um tipo raro de ação contra uma empresa desta grande escala.

A reputação da Boeing destruída

Nos últimos meses, após os acidentes fatais de 2018 e 2019 e o episódio de 5 de janeiro, dois de seus denunciantes faleceram, incluindo o ex-funcionário da Boeing, John Barnett, que se matou devido ao que sua família disse ser um “ambiente de trabalho hostil” na Boeing, causando-lhe TEPT. .

A reputação da empresa foi publicamente destruída, com o CEO Dave Calhoun enfrentando críticas de um painel do Senado na presença de famílias de vítimas de acidentes, sobre falhas de segurança e qualidade da Boeing e alegações de denunciantes de que a empresa estava cortando atalhos...

...A empresa também está enfrentando dificuldades para conseguir novos pedidos devido a questões de segurança. De acordo com um relatório da Associated Press, no mês passado, a Boeing recebeu pedidos de apenas quatro novos aviões, enquanto nenhum pedido foi feito para seu 737 Max, o mais vendido, marcando o segundo mês consecutivo sem pedidos do 737 Max...

Até agora, em 2024, a Boeing recebeu apenas 142 novos pedidos brutos, em comparação com 1.456 em 2023.

Mais do que apenas afetar os resultados financeiros e o preço das ações da Boeing, a empresa foi acusada de arrastar para baixo toda a indústria manufatureira dos Estados Unidos.

O que deu errado?

Os especialistas atribuíram amplamente o colapso da Boeing a uma cultura desconhecida de colocar os lucros à frente da segurança e do design, o que acabou afetando a qualidade dos aviões...

[Link]


E no mês passado, o presidente da maior companhia internacional do mundo falou. O que indicia a gravidade da situação e que já não é possível esconder.


Presidente da Emirates Airlines põe segurança da Boeing em causa

A crise de segurança que afecta a Boeing está a ser preparada há mais de uma década”, afirmou o chefe da maior companhia aérea internacional do mundo. Sir Tim Clark afirmou que os problemas do gigante aeroespacial começaram há 10 ou 15 anos, quando, segundo o próprio, a empresa começou a concentrar-se nos lucros em vez de se concentrar na excelência da engenharia...

...Na conferência da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) que se realizou no Dubai, Sir Tim  acrescenta que a Boeing não tinha “nenhuma boa razão para fazer impiedosamente cortes de custos” que, segundo ele, lançaram a cadeia de suprimentos em turbulência, particularmente porque começaram esses cortes na altura em que deram inicio à produção do novo 787 Dreamliner...

... Na nossa actividade, não se pode tirar os olhos da bola. Certamente que os fabricantes não o podem fazer. As finanças não são difíceis. A engenharia é que é”...

... Sir Tim afirmou ainda que a Boeing deveria ter tomado as rédeas da situação na sequência de dois acidentes mortais com o avião 737 Max, que ocorreram depois de o software instalado pela empresa ter interferido com a capacidade dos pilotos para pilotar o avião...

[Link]

As declarações no mês passado do presidente da Emirates, acabam por validar tudo aquilo que tenho vindo a dizer desde 2009 e que está registado neste blogue.

A situação da Boeing é gravíssima. E é preciso muita coragem por parte de uma companhia de aviação sabendo dos problemas, comprar Boeings. E só os compram porque não há alternativas. A Airbus não consegue dar conta de tantas encomendas. Mas se começar a haver mais desastres...

Estamos numa fase de encruzilhada, quando há um nítido declínio dos EUA neste segmento tão complexo e temos duas potências a tentar entrar nele. A China e a Rússia. E a quem a Boeing está a estender o tapete vermelho...

Mas a Boeing não se fica por aqui. A Boeing sonhou em voar ainda mais alto. A Boeing quer chegar ao espaço. E o que está a acontecer? o expectável para uma companhia que trocou a segurança, o conhecimento, a tecnologia por lucros.

A Starliner.



A Starliner é o novo caixão, perdão, a nova nave, da Boeing com capacidade de levar astronautas para a Estação Espacial Internacional. E o que aconteceu mais uma vez? A coisa correu mal. Já tinha corrido mal anteriormente, foi adiado várias vezes o seu lançamento, mas a pressão, o dinheiro, o prestígio empurraram a decisão arriscada de enviar esta nave, sabendo que havia e há problemas com ela. Resultado? Uma nave com problemas, presa na estação, juntamente com os seus astronautas que eram para passar uma semanita. Já lá vão 70 dias e sem fim à vista.

Os problemas são mais que muitos. Estão duas pessoas a mais na estação que não deveriam estar lá. Precisam de comer, beber e claro, consumir oxigénio. Pelo menos. Não há um supermercado ali na esquina. A Uber também não costuma andar por estas zonas. E as portas não abundam na estação. Uma está agora ocupada com uma nave encalhada. E não há muitos táxis disponíveis por aqui. Nem reboques.



Este é o panorama da estação a 12 de Agosto. Está assinalado a vermelho a Starliner. O risco vermelho separa (duma forma grosseira) o segmento americano/Ocidental da russa. Há 2 dias atrás a Rússia lançou a Progress 89.

A estação tem 6 pontos de entrada completamente funcionais. 4 do lado russo, dois do lado americano. AMBAS as portas do lado americano estão ocupadas. E uma delas ficou com uma nave empanada.

Ou seja, a estação espacial ficou com menos um ponto de entrada. Que se fosse do lado russo, significaria perda de 25%, mas do lado americano representa 50%. Para piorar as coisas, não podemos esquecer que estas naves acopladas também são as naves de socorro, caso algo corra mal na estação.

Do lado russo, podem estar em simultâneo duas naves que transportam astronautas e duas naves de carga. Do lado americano, agora só pode estar uma nave de cada vez. Porque eu suspeito que não vai ser possível retirar dali aquela malfadada nave da Boeing. E nem a NASA nem a Boeing têm soluções para aquilo. E num ano de eleições nem pensar em soluções arriscadas.


Regresso a Terra dos astronautas que viajaram na Starliner "ainda é incerto", admite NASA 

O regresso a Terra dos dois astronautas que viajaram em junho na primeira missão tripulada da nave Starliner da Boeing à Estação Espacial Internacional (ISS), que teve falhas de propulsão e fugas de hélio, ainda é incerto.

Em conferência de imprensa realizada hoje, a NASA acrescentou que continua a analisar os dados dobre o sistema de propulsão da nave Strarliner para avaliar as "opções de regresso".

Os astronautas Barry `Butch` Wilmore e Sunita `Suni` Williams cumprem hoje setenta dias a bordo da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla original), quase oito semanas mais do que o tempo previsto...

...Em 07 de agosto, a NASA revelou que estava a avaliar a possibilidade de trazer os dois astronautas de volta em fevereiro de 2025 a bordo de uma cápsula Dragon da SpaceX...

[Link]

A NASA está a atirar a coisa para depois das eleições, a visibilidade absolutamente negativa para os EUA é abismal. Nenhum político quererá ficar agarrado a isto. Isto começou mal e tem muita probabilidade de acabar mal. A situação é um desastre e a Boeing está, diria eu, arrumada quanto ao espaço. Falta saber quanto tempo demorará para ficar arrumada nos céus.

Uma coisa não podemos ignorar. Os EUA estão numa indiscutível fase descendente. Estão com problemas em empresas de topo, em reguladores e no controlo e primazia do domínio da tecnologia. Isto numa altura em que o seu controlo pelo dominio planetário está a ser contestado por outras potências. Contestado também no domínio dos céus e do espaço.

Temas a acompanhar nos próximos anos. Pois vem aí muitas alterações.